Francesca Bridgerton sofre
daquele estranho mal do “filho do meio”, apesar de ser a sexta e não a terceira
filha: ela existe, mas se perde no limbo que são os mais velhos e os caçulas e
acaba esquecida. Muito pouco citada nos livros anteriores, à exceção do de
Eloise, nós não sabemos bem o que pensar dela porque a própria autora não nos
deu muito para trabalhar. Essa alienação é proposital e só descobrimos o motivo
quando mergulhamos em sua história.
Francesca é Lady
Kilmartin, casada com John, o anglo-escocês Conde Kilmartin e prima por casamento de
Michael Stirling, a inseparável sombra, melhor amigo, irmão de criação e
confidente de seu marido. Como sempre se sentiu diferente do restante da
família, sendo mais reservada e com uma sagacidade diferente de suas
extrovertidas irmãs, foi um alívio para ela casar e sair da tumultuada Casa
Bridgerton. Anteriormente, nossos olhares se concentraram no Número
Cinco e seus habitantes e para muitos leitores, esta não é uma das histórias
favoritas justamente por nos afastar um pouco do ambiente da família. Permita-me discordar de você, se for esse o caso, e lhe apresentar
meus motivos para defender esta personagem e esta história.
O ritmo inicial do livro é
completamente diferente do que estamos acostumados até então: não há
debutantes, não há bailes seguidos na sociedade, não há uma mocinha sonhando
com sua temporada e seu príncipe, mas uma mulher madura, sarcástica e já casada
há dois anos, o que faz dela muito mais vivida do que suas irmãs. Sua vida
era praticamente perfeita em todos os quesitos, mas falta na narrativa esse
tipo de “emoção jovem”, digamos assim, que Julia Quinn nos ofereceu até então –
o que para muitos fez a diferença entre gostar ou não deste livro.
Nas primeiras trinta
páginas, já levamos um murro bem no meio da cara quando John morre, tornando
assim Michael o novo Kilmartin, mas com Francesca grávida, o título fica em
suspenso e a gente, sem saber muito que pensar. John não era para ser o
mocinho, já que é casado com Francesca? Onde entra Michael nesse balaio?
Logo entendemos que o
Devasso Alegre, como Michael Stirling é conhecido na sociedade londrina, sofre
de uma imensa paixão platônica por Francesca desde a primeira vez que a viu,
trinta e seus horas antes de se casar com seu amado primo. A fim de suportar
ver o feliz casal, já que é amigo próximo de ambos, firma sua reputação de
canalha numa triste tentativa de substituir o verdadeiro objeto de sua afeição.
Quando John morre, Francesca perde o bebê e tudo o que era do primo se torna
legalmente dele, Michael sofre ainda mais do que já sofria antes.
Este é um mocinho
complexo, carregado de culpa pelo que sente, culpa por herdar até as botas de John e reage com horror e choque ao que a sociedade chama de “imensa sorte”.
Michael nunca desejou o título, a ascensão social, o dinheiro, apenas a mulher
e isso já o atormentava o suficiente. No fim das contas, ele só queria seu
primo de volta, mesmo que lhe custasse Francesca e isso diz muito a respeito de
seu caráter: o que outros celebram como bem-aventurança, ele odeia com todas as
forças.
Francesca é uma personagem
interessante, porque ocupa uma posição muito privilegiada e rara naquele tempo,
que era o de uma viúva rica. As restrições e regras sociais que cabiam às
mocinhas não se aplicam a ela, nem na juventude que ela está vivendo e menos ainda numa futura velhice, como é o hilário caso de Lady Danbury. Sua condição também nos permite ter um breve, mas
necessário, vislumbre da Violet Bridgerton jovem e seus motivos para permanecer
viúva, assim como os de Francesca para querer se casar novamente. Diferente de
muitas mocinhas de época, Francesca pôde tomar o controle de sua própria vida e
ir em busca de um novo marido, quatro anos depois de luto completo. Duplamente dotada financeiramente pelos Bridgertons e pelos Stirling, se torna a desejável da temporada e o
pesadelo de Michael fica ainda mais enegrecido: terá ele que suportar novamente
perder a mulher que ama há seis anos, sem nunca se declarar? Assistir sem nada fazer a fila de pretendentes que se forma em sua porta?
Francesca e Michael dançam
lentamente a mais sedutora e antiga das danças do mundo e acompanhar um amor
maduro florescer, é algo que poucos livros atuais e famosos se dão ao trabalho
de nos mostrar, já que a maioria das protagonistas ou está na escola, ou acabou
de sair dela. Nada contra, também amo essas histórias quando bem-feitas, mas já
tendo passado dessa fase, enxerguei em Francesca e em Michael uma profundidade que
os outros livros da série não podem nos oferecer. Não era ilegal para ambos se
casarem, mas seria moral? Como lidar com a perda de John, de um bebê, de um
futuro? Como ser feliz de novo se isso parece desonrar o que se sentiu
anteriormente? Como superar a culpa que ambos sentem?
Se ainda não leram esta
história, corram. E se já leram, permitam-se, como os personagens, a dar uma
segunda chance e reler com novos olhos. Garanto que não irão se arrepender.
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